Pedro, porta-voz dos discípulos, simples pescador, chamado para ser pescador de homens, novamente precipitou-se em falar: “Ainda que todos se escandalizem, nunca, porém, eu!... Ainda que seja necessário morrer contigo, de modo nenhum te negarei.” (Mc 14:29-31). Pedro “abre a boca” e fala sem pensar. Sim, é verdade, todos os outros também disseram o mesmo, pois era Pedro que havia mostrado o caminho, e acaso, eles eram menores que Pedro? Todos concordaram que nunca abandonariam o Senhor Jesus, mesmo que tivessem que morrer com Ele.
E todos do mesmo modo fugiram para salvar suas peles. Justamente quando o Senhor necessitava, O abandonaram, ficando Ele, completamente só.
Pedro Vê Jesus ao Longe
Pedro, não só abandonou Jesus juntamente com os outros, como ficou “a uma distancia segura”, e estava ali presente, vendo a Jesus e sendo visto por Ele, mas sem se declarar a favor do Senhor. Ao contrário, O negou, negou novamente e finalmente O negou com juramento, que era a forma mais forte de declarar a verdade de sua afirmação. Não sei o que é pior, mas creio ser preferível ficar só, a ver com meus próprios olhos ser negado por um dos que deveriam estar ao meu lado. É como ser desprezado duas vezes.
Ah Pedro! Impetuoso como um adolescente valente num primeiro momento, mas paralisado de medo pouco depois. Pronto para falar, mas sem estabilidade emocional e caráter necessário para ser fiel à sua própria palavra. Num abrir e fechar de olhos, seu mundo desmoronou. Como teria sido o olhar do Senhor que num instante penetrou no mais profundo da alma de Pedro, que o fez sair correndo para chorar amargamente pela pobreza de seu coração?
Olhar cheio de amor? Sem dúvida. E um amor que desnuda nossas necessidades e nos confronta com nossa pobre realidade.
A Crise de Pedro
Assim entrou Pedro numa das mais profundas crises que jamais experimentara. Nem as palavras “afasta-te de mim Satanás” (Mateus 16:23 – “Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens.”) que Jesus havia dirigido a ele poucos meses antes, abriu seu coração como este olhar. O que estava acontecendo? Ele tinha negado Jesus realmente? Como era possível? Que tolo, que covarde ele tinha sido! Cheio de autocensura e, com certeza, uma grande dose de autocompaixão, Pedro se afundou numa depressão da qual, seguramente, não imaginava sair nunca mais. Mas Deus tinha outros planos para ele.
Não acredito que Pedro enxergasse muito além de suas lágrimas e das trevas em seu coração, quebrantado pelo reconhecimento de seu fracasso pessoal. Mas Jesus, o primeiro e o último, o princípio e o fim, que sonda os corações e os transforma, conhecia seu discípulo. Já havia profetizado não apenas sua queda, mas seu regresso arrependido e sua subseqüente responsabilidade como servo de Deus: “Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu para os cirandar como trigo; mas eu roguei por ti, para que tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, fortalece teus irmãos.” (Lc 22:31,32). Todos abandonariam o Senhor, inclusive Pedro, mas uma vez recuperado se sua experiência, seria a “peça chave” na consolação de seus irmãos e na edificação da primeira comunidade cristã.
A Escola de Deus
A formação que Deus opera em Seus servos não é um treinamento teórico do qual se recebe um diploma, se enche a cabeça de informações mais ou menos úteis e se adquire o respeito institucional de suas futuras “vítimas”. É uma formação que visa primeiramente a pessoa em si, seu caráter. Somos seres humanos e para Deus interessa muito mais quem somos ao invés do que sabemos fazer. Nossas escolas teológicas deveriam dar-se conta deste fato. Quando nos forma para Seu serviço, a prioridade de Deus está no que seremos e não no que sabemos ou aprendemos a fazer. E o fracasso tem um papel fundamental neste processo.
Jesus havia dito a Pedro que este seria um pescador de homens, mas Pedro jamais imaginaria toda a implicação que teria tal transformação. Neste momento não podia nem pensar em pescar homens. Tinha fracassado. Seus sonhos e suas ambições de compartilhar a glória do Messias em Seu reino estava em pedaços e não contava mais com Ele agora. Estava no fundo do poço, decepcionado consigo mesmo e certo que era impossível ser útil novamente.
A Ressurreição de Cristo
Sim, o Senhor havia ressuscitado e Pedro não tem mais nenhuma dúvida da autoridade e poder de Jesus sobre a morte e o inferno. Já havia visto o Senhor, estava convencido de sua identidade e autoridade, mas a amargura e o sentimento de fracasso pessoal a ressurreição de Jesus não pôde apagar. Pedro continuou mergulhado nas lembranças daquela noite quando não pôde suportar sua própria covardia e negou seu redentor, salvador e amigo diante de Seus próprios olhos. Pedro, agora, era um homem condenado a viver pelo resto de sua vida com a sombra de sua própria incompetência.
A Volta do Pescador de Peixes
Dentro deste quadro de desespero, fica fácil entender porque Pedro voltou à sua antiga profissão. O pescador voltara a “pescar peixes”, convencido que nunca mais serviria para pescar homens. “Vou pescar”, informa aos demais discípulos, sem maiores explicações, que animam-se a acompanhá-lo (Jo 21:3). Pedro sempre foi o primeiro entre eles. O pioneiro que lhes abria o caminho, o líder entre os líderes e, realmente, ele o era. No certo ou no errado, Pedro sempre estava na frente. Uma longa noite de trabalho sem pescar absolutamente nada, então, acontece uma cena inesperada.
A Problemática das Traduções
Mas antes de entrarmos nos detalhes deste acontecimento emocionante, é necessário entendermos que estamos, mais uma vez, diante de um problema de tradução da Bíblia. Na tradução de qualquer texto, de uma língua para outra, vez por outra, o tradutor enfrenta o problema das palavras correlatas. Nem sempre, existem palavras que exprimem com exatidão o que se está dizendo em uma língua diferente. Nunca existe equivalência exata das palavras entre idiomas distintos. A “esfera de referência” de uma palavra no português (do Brasil), por exemplo, nunca se encaixa 100% com uma palavra em inglês ou vise-versa. Uma palavra pode ser traduzida por várias outras em outro idioma e, qualquer destas palavras contém um sentido muito mais amplo que a palavra originalmente traduzida e necessita, às vezes, de outras palavras para expressar seu sentido no primeiro idioma. Deus realmente, fez um excelente trabalho em Babel.
O hebraico é uma língua poética e muitas vezes imprecisa, com várias palavras de significado obscuro para nós hoje em dia. Por outro lado, o grego é um idioma ideal para as expressões filosóficas, com um vocabulário menos “florido”, porém com tempos verbais muito exatos. É por isso, que temos que dar glórias a Deus, pelos homens que se levantam para o árduo trabalho de tradução da Bíblia, porque não é um trabalho fácil, na medida em que se deparam com expressões idiomáticas sem “equivalência” entre o grego, aramaico ou hebraico e o português, tornando assim um desafio para eles, na tentativa de buscarem palavras ou expressões que tragam o máximo de exatidão do sentido original.
Como exemplo desta dificuldade, temos dois verbos, principais, no grego bíblico que são traduzidos para o português como “amor”. Têm significados parecidos, mas somente parecidos, ambos dentro de uma “esfera de referência” de “amar” em português. Não falam do mesmo tipo de amor. “AGAPAO” refere-se, na maioria das vezes, ao amor perfeito de Deus para conosco, um amor que temos em relação ao outro, um amor que ama sem esperar recompensas. Por exemplo: “Deus ‘agapo’ o mundo de tal maneira que deu o seu filho unigênito...” (Jo 3:16) ou ainda: “‘Agapaos’ uns aos outros assim como eu ‘agape’ (agapê) a vocês”. É um derivado do termo conhecido “ágape”, que se refere ao mesmo tipo de amor.
Logo após, temos o termo não menos importante, “FILEO” que significa querer bem, ter amizade, apreciar, estimar ou amar como amigo. É o amor da relação, o amor recíproco mais que o amor da caridade. O “filósofo” é o amigo de “sofia”, a sabedoria. “Filadélfia” nos fala do amor entre irmãos, e “Teófilo” é aquele que ama a Deus.
De Volta à Pescaria
Mas, agora, vamos nos voltar a Pedro e seus amigos exaustos no barco, após uma noite inteira de tentativas mal sucedidas no mar da Galiléia. De repente, aparece na praia uma figura misteriosa e recomenda que eles joguemsuas redes do outro lado do barco, uma última vez. De imediato, eles lançam as redes e uma experiência do passado ecoa dentro de Pedro. “É o Senhor!” (Jo 21:7) disse João. E Pedro, que desta vez não tenta andar sobre as águas, se veste, pula na água e nada mais ou menos cem metros até à praia, para encontrar com seu mestre que, uma vez mais, demonstrou que era o Senhor até de seu trabalho. “O pescador estava sendo pescado novamente”.
Em que estaria pensando Pedro? Talvez passe por sua mente as lembranças de aproximadamente três anos atrás quando aquele homem veio se meter em algo que não “entendia”, pois ele, Pedro, era o pescador. Ele é quem entendia do assunto. Não aquele homem que chegou, subiu no barco, falou com a multidão e depois disse que lançassem a rede. “Quem ele pensa que é?” Talvez dissesse Pedro consigo mesmo!
Mas Jesus é Senhor de toda a criação, como futuramente provou inúmeras vezes a Pedro neste mesmo mar da Galiléia. As redes se encheram, e Pedro ficou convicto no mesmo instante do verdadeiro estado do seu coração “Afasta-te de mim Senhor, porque sou pecador”. Graças a Deus porque a história não parou por ai. Jesus não se surpreende com nossa teimosia, orgulho, nem com a lista completa de nossos pecados mais escondidos, e que Ele conhece detalhadamente. Ele já tinha visto até o mais profundo de Pedro e, mesmo assim, o queria como discípulo, e mais, como instrumento de Sua obra. “Não temas, de agora em diante serás pescador de homens” (Lc 5:8-10).
Aqui está um segredo
“A consciência de nossa incapacidade está diretamente ligada com nossas possibilidades de sermos úteis ao Reino de Deus”. Assim a confissão de incapacidade de Pedro foi seguida imediatamente pela confissão do Senhor e a utilidade de Pedro no serviço d’Ele. Tal como Isaías, consciente de seu pecado, foi chamado a levar a Palavra de Deus à sua nação.
Mas agora, com os acontecimentos dos últimos meses vivos em sua mente, Pedro enfrentava novamente o seu fracasso como discípulo e o poder milagroso do Senhor Jesus que o havia chamado novamente para a Sua obra. Porque não podia deixá-lo em paz? Porque não posso ser deixado em paz? Porque esse pastor não me deixa em paz e para de me cobrar? Não para de cobrar compromisso, responsabilidade? De volta a seu antigo trabalho, Pedro se encontra novamente com este Jesus que não o deixa esquecer de seu chamado de ser “pescador de homens”.
A restauração de Pedro
Depois de comer tranqüilamente na praia, Jesus volta Seu olhar para Pedro e pergunta sem papas na língua: “Me amas mais do que a estes?” Sou mais importante para ti Pedro, que estes utensílios de pesca? “Sim Senhor, tu sabes que te amo” responde Pedro, certamente um pouco incomodado. “Então, apascenta as minhas ovelhas”, responde Jesus, iniciando um processo personalizado de recuperação pelo qual traria Pedro de volta a seu chamado e responsabilidade pela Igreja que nascia (Jo 21:15).
É aqui, que iremos nos deparar com as dificuldades de tradução. Pois, no diálogo que se segue, entre perguntas e respostas entre o Senhor Jesus e Pedro, encontramos o problema da “esfera de referência”. Com base nas versões mais usadas pelos crentes de língua hispana, a RV, “La Reina e Valera”; DHH, “Dios Habla Hoi”; e a NVI, “Nova Versão Internacional”, encontramos Jesus perguntando a Pedro: “Tu me ágapes?”, “Tu me amas com um amor sem interesses, de entrega total e serviçal?” Pedro, consciente de sua trajetória recente, não podia mais prometer o que não poderia cumprir e sabia que não chegara ao nível demandado. “Senhor, tu sabes que te fileo”, “Tu sabes que gosto de ti como amigo, que me és agradável, mas não peças para fazer o que não posso cumprir”.
Esta distinção é ressaltada na DHH, que tenta mostrar a diferença com o uso dos verbos “amar” e “gostar” e a versão NVI com as expressões “amar de verdade” e “amar” para traduzir “agapao” e “fileo”, respectivamente.
Numa segunda vez Jesus pergunta “Pedro, tu me amas, me ágapes?” Novamente Pedro responde com uma honestidade dolorosa “Tu sabes que gosto de ti, que te fileo” e apesar da falta evidente de resposta, Jesus prossegue Seu processo de restauração: “Apascenta minhas ovelhas”.
No entanto, na terceira vez algo muda! “Simão, filho de João, me Fileo, gosta de mim?” Jesus aceitou que Pedro não poderia oferecer aquilo que não tinha e não lhe impõe nenhuma condição irrealista para perseguir em seu chamado. Pedro se entristece profundamente, não porque Jesus fizera a mesma pergunta três vezes consecutivas (que é o sentido natural que se tira desta passagem) e sim porque nesta terceira vez, Jesus desceu ao nível de Pedro. Parece que Jesus está ciente da realidade do pobre compromisso de Pedro e que o próprio Pedro não pode fingir “ser alguém” que não é aos olhos do Senhor. “Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que gosto de ti, que te fileo.”
A Triste Realidade de Pedro
“Não posso dar-te mais e me dói muito que tenhas que descer ao meu nível. Mas Senhor, gosto de ti com tudo o que te posso dar”. “Apascenta minhas ovelhas”. Tremendo! Totalmente consciente de quem é, e agora sem aquela auto-confiança, Pedro recebe a renovação de sua comissão no serviço do Senhor.
Não é possível crer! Como pode Jesus confiar Suas ovelhas a Pedro, sendo ele quem é, e depois de tudo o que fez? Mas ele é aceito tal como é, e é útil tal como é. O reconhecimento de sua fraqueza era o passo decisivo para finalmente chegar onde Deus queria.
E Hoje?
Nada mudou até os nossos dias. A idéia de que se deve alcançar um nível espiritual misterioso para servir a Deus mantém muitos distantes de uma vida útil ao Reino. Jesus não pretende que sejamos “perfeitos” para responder Seu chamado. A única coisa que exige é que sejamos conscientes de quem somos, da necessidade de Seu perdão, de Sua graça e que O amemos acima de tudo, ainda que com um amor imperfeito.
Deus não espera o impossível de nós, pois Ele é o Deus do impossível. Ele sabe que somos povo, e quer que também o saibamos. Deus não se importa em nivelar-se a nós e aceitar as nossas muitas limitações, se somente formos sinceros com Ele.
Quem Aceita Quem?
Temos o péssimo costume de dizer que nós temos aceitado Jesus, quando na verdade, é Ele quem tem nos aceitado como somos, com nossas limitações e fraquezas, para o Seu serviço. Seus servos do passado, sempre foram pessoas humildes, mas muito mais conscientes de suas próprias incapacidades do que de suas habilidades.
Como é o nosso amor por ele? Não é na realidade, como neblina matinal que desaparece ao raiar do sol? Se Ele não nos tivesse amado primeiro, seríamos capazes de amá-lO?
Hoje, como naqueles dias, Jesus continua buscando homens e mulheres que estejam dispostos a aceitar o desfio de se deixarem moldar pelas Suas mãos até chegarem a ser “pescadores de homens”. Não é um processo fácil nem instantâneo e envolve o discípulo numa viagem de autoconhecimento que o levará muitas vezes ao limite do desespero. Mas vale a pena.
A Recompensa
A recompensa é o encontro pessoal com o Senhor, onde nos confirma Seu amor e aceitação apesar de nossa natureza empobrecida. Ele nos leva a uma vida de serviço, ao privilégio de sermos Seus colaboradores na missão de evangelização mundial.
Ao ouvir, então a pergunta que certamente lhe está sendo feita agora: “Filho meu, me amas de verdade?” responda assim: “Oh, Pai! Tu sabes todas as coisas. Me conheces melhor que eu mesmo. Não posso te enganar Senhor, nem quero fingir ser quem não sou. Mas te quero, com tudo que sou, eu te quero. Sou teu e desejo poder servir-te assim como sou. Obrigado por me aceitares, por me amares, por me quereres. Senhor, coloca-me onde melhor te possa servir em Teu Reino. E se puderes ser glorificado através de minha vida, usa-me. Senhor, sabes que te quero muito”.
Bibliografia: “Nem tudo o que há em nossas Bíblias foi inspirado por Deus” – Neil Rees (Horizontes Brasil – 1ª Ed. Ano 2000)
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ME AMAS MAIS DO QUE A ESTES? by Sergio Luiz Menga is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 3.0 Brasil License. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://smenga.blogspot.com/.
2 comentários:
Pr.Sergio... prazer, seu blog é muito bom, edifica nossas vidas.
Não pare de escrever, semear a semente, semente que é Cristo.
Um grande abraço,
Sidney
Prezado irmão Sidney,
Graça e Paz.
Muito obrigado por suas palavras e incentivo. Obrigado também por sua visita.
Entrei em seu Blog, também, e gostei muito. Achei interessante a abordagem, visto que também sou Designer Gráfico por profissão.
Já o estou seguindo também.
Um forte abraço,
Pr. Menga
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